A American Bar Association (ABA), a mais importante associação de advogados dos Estados Unidos, publicou a Formal Opinion 512 (Parecer) para orientar sobre os limites éticos do uso de inteligência artificial por advogados, incluindo a definição de honorários. Sabe-se que nos EUA ainda é muito comum a cobrança por hora no mercado jurídico e há uma resistência à cobrança em outros formatos, como um percentual do êxito.
Em serviços cumpridos em menos tempo a partir do uso de inteligência artificial generativa, o Parecer aponta que o advogado deve cobrar menos do que cobrava ao executar a tarefa sem o uso de IA, mesmo nas contratações em que os honorários não são definidos por hora trabalhada:
Os fatores estabelecidos na Regra 1.5(a) também se aplicam ao avaliar a razoabilidade de cobranças por ferramentas de Inteligência Artificial Generativa (GAI) quando o advogado e o cliente definem honorários fixos ou contingentes. Por exemplo, se o uso de uma ferramenta de GAI permite que o advogado complete tarefas muito mais rapidamente do que sem a ferramenta, pode ser considerado irrazoável, de acordo com a Regra 1.5, que o advogado cobre a mesma taxa fixa ao utilizar a ferramenta de GAI e ao não utilizá-la. (p. 12, tradução livre)[1]
Como se vê, o mercado jurídico americano é tão acostumado às time sheets que a ABA aplicou o mesmo raciocínio em contratações cujos honorários são baseados em modelos diversos. Isso é relevante para o mercado brasileiro porque o modelo americano, dada a sua maturidade, inspira a atuação de grandes bancas de advocacia por aqui.
A ideia da ABA é compreensível. Se agora o advogado consegue fazer aquele apanhado jurisprudencial, aquele esboço de minuta e aquela análise de documentos em segundos com IA, seria irrazoável ele continuar cobrando o mesmo que cobrava quando tinha que fazer tudo isso manualmente. Menos tempo envolvido, menor preço.
Teoria do valor-trabalho vs teoria do valor-utilidade
No entanto, essa é uma visão econômica ultrapassada: a teoria do valor-trabalho, segundo a qual o valor monetário de um produto é resultante da quantidade de trabalho necessário para produzi-lo.
É que, em síntese, a quantidade de trabalho (tempo e esforço) empreendida num produto ou serviço não importará para a precificação se não houver uma correspondência com a utilidade percebida por seus potenciais compradores. E essa utilidade é um elemento mais complexo do que a simples quantificação do tempo investido em algo.
Na média, as pessoas não atribuem maior valor a uma determinada caneta porque a fábrica que a produziu possui máquinas e profissionais menos ágeis. Mas sim se a caneta possui maior durabilidade, melhor design e se desliza melhor no papel.
Muitas vezes, o produto que levou menos tempo e esforço em sua confecção pode trazer maiores benefícios (utilidade) ao comprador, ainda que estéticos ou mesmo reputacionais.
Nessa mesma toada, uma petição cheia de doutrina, jurisprudências e fundamentações exageradas pode ser menos eficaz no convencimento do magistrado do que a petição com poucas páginas que focou na clareza da narrativa, dos argumentos e da norma aplicável.
É nessa linha que segue a teoria do valor-utilidade, muito mais aceita pelo mainstream econômico. Ela reconhece que o valor monetário de um bem ou serviço está fortemente associado à sua utilidade para aquele que o consome.
Como bem nos recorda Robert J. Dolan no clássico artigo da Havard Business Review (How Do You Know the Price is Right?), os pilares da precificação são custo, concorrência e, antes de tudo, o valor percebido pelos consumidores[2].
A teoria do valor-trabalho foi aquela pensada por economistas que viveram o capitalismo do início da Revolução Industrial no século 18, ainda com pouca diversidade e diferenciação de produtos e serviços. No século 19, conforme o capitalismo desenvolveu múltiplas possibilidades para consumo, a importância da utilidade para o valor monetário se tornou mais evidente.
Aparentemente, o mercado jurídico – em seu espaço geográfico de maior sofisticação, o americano – se blindou dessas mudanças de concepção. O modelo de horas trabalhadas (billable hour) sobreviveu a pelo menos três revoluções industriais – a mecânica, a elétrica e a automação – e ainda é o modelo de precificação dominante. Porém, a 4ª Revolução Industrial e respectiva redução do tempo para executar tarefas a partir da IA atingiu em cheio o setor de serviços, escancarando a inadequação do modelo.
A famosa time sheet traz externalidades negativas à eficiência do mercado
Imaginemos dois advogados num mesmo escritório, ambos trabalhando na redação de contratos de mesma complexidade. Um deles finalizou o trabalho mais rápido, possibilitando que a operação do cliente inicie antes. Já o outro finalizou o mesmo trabalho precisamente no prazo de que dispunha.
Como o contrato utiliza o modelo de horas trabalhadas, o advogado que desempenhou a tarefa com agilidade gerou menos dinheiro ao escritório do que o advogado que chegou ao limite do prazo que dispunha. Ainda, se o plano de carreira exigir metas de horas em time sheet para a promoção, provavelmente o advogado menos ágil sairá na frente.
Há, portanto, um desincentivo financeiro para que escritórios de advocacia e seus associados desempenhem atividades com agilidade. O que pode afetar até mesmo a disposição dos escritórios em abraçar, plenamente, a inteligência artificial e o respectivo aumento de eficiência.
Mas o abraço pode não ser uma opção. Parece ser um caso de destruição criativa, termo criado pelo economista Joseph Schumpeter para definir o efeito de tecnologias que aumentam a produtividade e levam ao prevalecimento dos empresários inovadores sobre os não-inovadores[3].
A eficiência trazida pela inteligência artificial tende a ser um diferencial competitivo que colocará em desvantagem mercadológica aqueles que não a possuírem. Além da competição com outros escritórios de advocacia, também estão no jogo as auditorias, consultorias e os próprios departamentos jurídicos, que vêm ampliando o seu escopo de atuação dentro de uma perspectiva “business oriented”, mais focada em resultado e menos no Direito como um fim em si mesmo.
Os escritórios que não se modernizarem terão de lidar com a pressão sobre os honorários, mas não terão a capacidade tecnológica para executar a eficiência que permita essa redução de modo sustentável.
E ainda que resistam à redução, escritórios de advocacia ainda terão que lidar com a desvantagem de outros escritórios menores ou com menos reputação conseguirem produzir mais com o mesmo número de associados, cobrando os mesmos honorários. Escolher não ser mais eficiente cobra um preço, às vezes impagável.
Mas há também oportunidades para além da sobrevivência, mesmo no modelo de horas trabalhadas. O aumento da capacidade de execução do escritório poderá levar a um aumento no volume de serviços contratados, sobretudo os de menor complexidade, o que pode vir a compensar financeiramente eventual redução do ticket médio.
Não há dúvida de que, sobretudo na operação de demandas simples ou repetitivas, muitos escritórios se aproveitarão do barateamento para ganhar no aumento do volume de contratações – um refinamento do modelo “salsicharia do direito”, que já foi manchete na Exame[4].
Mas em geral, o modelo de horas tende a ser inadequado para preservar a remuneração dos advogados que se utilizem de IA sem que isso desvalorize a expertise necessária para guiar, melhorar e validar os resultados da IA.
É preciso compartilhar vantagens entre contratantes e escritórios
Não se critica aqui a redução dos honorários, que pode fazer parte de uma dinâmica natural de todos os mercados diante do aumento de produtividade provocado pela IA, conforme estudo do Bank for International Settlements[5].
O que sugerimos reflexão é que o modelo de horas trabalhadas pode traduzir mal a utilidade dos serviços advocatícios em forma de preços, chegando ao seu limite sobretudo diante do choque de eficiência trazido pela IA.
Mas como garantir que essa eficiência beneficie os contratantes sem que desvalorize artificialmente o papel dos advogados? Bom, na precificação do serviço é razoável checar – e a competitividade o impõe – se essa utilidade está sendo compartilhada. Nos casos em que não for possível reduzir os honorários, beneficiando o contratante pela redução do custo, é razoável que haja um aumento da utilidade ou valor entregue. E esse incremento pode vir por diferentes aspectos, como os listados a seguir.
Como a inteligência artificial pode aumentar a utilidade dos serviços para o contratante
Time is money. Ressalvadas as críticas, o modelo de time sheet ao menos evidencia que o tempo é um recurso escasso e, portanto, possui correspondência em valor monetário. Assim, em muitas situações a entrega mais ágil de um serviço traz um potencial de utilidade ao seu destinatário. Por exemplo, a entrega mais rápida de um contrato possibilita uma antecipação da operação empresarial que ele regula.
Menos trabalho braçal, mais trabalho cerebral. Em muitos casos, um serviço jurídico pode ser dividido em duas dimensões: uma operacional (ex.: pesquisa jurisprudencial, busca de documentos, rascunho do contrato, envio de informações) e outra estratégica (ex.: planejamento, aplicação dos resultados na construção do argumento, estudos estatísticos da matéria do caso). A IA ajuda sobretudo na primeira dimensão, liberando o advogado para dedicar mais tempo à dimensão estratégica, precisamente a que agrega mais valor ao cliente. Isso significa a entrega de serviços mais robustos ao contratante, com a consequente redução de riscos.
Maior qualidade em tarefas executadas por IA. Há diversas tarefas em que a aplicação de inteligência artificial não apenas economiza tempo, mas aumenta a qualidade do resultado comparado às execuções por seres humanos. Por exemplo, a análise de dados, traduções, seleção de documentos, sumarização de textos, jurimetria. São casos em que a IA serve como uma ferramenta tecnológica que torna possível uma entrega de valor antes impraticável.
Assim, o ganho de valor para o contratante existe em muitos casos. O desafio é comunicar esse incremento, justificando a manutenção ou aumento do preço. Do contrário, a percepção de que o escritório pratica uma precificação injusta tende a ser negativa na busca por novas contratações.
Comunicar bem é fundamental
Esse processo de comunicação passa pela adoção de novos modelos de precificação baseados em entrega de valor. Embora o modelo de horas trabalhadas possa ser ajustado para remunerar serviços assistidos por IA, aumentando-se do custo por hora, a base de valor tende a justificar de modo mais direto o preço ao contratante.
Alguns modelos baseados em valor são: (a) honorários fixos, predeterminando a remuneração pelo serviço; (b) honorários contingentes, aplicável em demandas contenciosas, com remuneração apenas em caso de vitória, em porcentagem que compense o risco; (c) honorários de êxito, algo como um bônus em caso de vitória.
Outro aspecto do contrato que deve contribuir para a comunicação é a transparência. Como o Parecer da ABA acertadamente prevê, os escritórios devem informar aos contratantes se haverá o suporte de inteligência artificial na execução do serviço contratado e, em caso positivo, apontar medidas que assegurarão a confidencialidade de suas informações diante de IA baseadas em machine learning.
Conforme pesquisa da Latin Lawyer, 74% dos pedidos dos clientes em matéria de tecnologia estão relacionados à cibersegurança[6]. Nesse sentido, uma política interna para o uso de IA é bem-vinda.
Inteligência artificial X Advogados- Concluindo
Em suma, a adoção da inteligência artificial no mercado jurídico exige uma reflexão sobre o modelo de precificação de horas trabalhadas. Embora a American Bar Association sugira uma redução dos honorários em razão da eficiência proporcionada pela IA, essa abordagem é economicamente desatualizada e pode se revelar prejudicial tanto para escritórios quanto para contratantes.
O mercado jurídico deve finalmente despertar para a teoria do valor-utilidade, com os escritórios explorando formas de precificação baseadas no valor agregado e na utilidade do serviço assistido por inteligência artificial.
Para tanto, a transparência sobre o uso de IA e a comunicação que enfatize a utilidade desse tipo de serviço são fatores cruciais para garantir que contratantes e contratados estejam na mesma página, equilibrando a valorização da expertise jurídica com o aumento da utilidade dos serviços advocatícios, nos casos em que esse incremento de fato existir.
É um momento que reforça que o Direito e a forma não são fins em si mesmos, e que o importante para o cliente é que a advocacia os ajude a operar de forma mais eficiente.
Luciano Benetti Timm – Advogado, doutor em Direito e professor da FGV-SP
Wilton Gutemberg – Advogado de Contencioso Estratégico e Desenvolvedor de Negócios no CMT Advogados. Coordenador da linha de pesquisa em Direito, Tecnologia e IA do Núcleo de Pesquisa em Faculdade de Direito da UFPI – República