A miopia em transformações digitais

A miopia em transformações digitais

Há diversos caminhos para entender o que, agora, vem sendo chamado de Transformação Digital nas organizações. O meu começa com a pergunta: no seu negócio, o que não vai mudar nos próximos 10 anos?

Na busca da resposta, volto a 1937 com a publicação do artigo “A Natureza da Firma”, do economista e Prêmio Nobel Ronald Coase. Esse texto, um dos mais importantes de Economia, traz a reflexão que moldaria, de certa forma, todas as organizações até hoje. Mas antes, destaco o trecho com que Coase abre o seu artigo: “A Teoria Econômica sofreu no passado com o fracasso em esclarecer claramente suas premissas. Economistas, em suas elaborações teóricas, têm se omitido em examinar as fundações nas quais foram erguidas. Este exame é, entretanto, essencial não apenas para evitar equívocos e controvérsias desnecessárias que surgem da falta de conhecimento das suas premissas nas quais a teoria foi baseada, mas também por causa da importância extrema para a economia de um bom julgamento na escolha entre conjuntos de premissas que se rivalizam”.

Se esse trecho era importante naquele momento, agora, se torna um requisito obrigatório para diversas áreas do conhecimento, um farol em um mar de fake news, “superficialistas” e grandes tsunamis paradigmáticos.

Mas, em seu artigo, Coase traz elementos sobre a razão de uma organização existir. Na sua proposição, uma empresa existe porque pode ter mais lucros em função da possibilidade de obter custos de transação mais vantajosos. Neste contexto, uma fábrica de pequeno porte de tecidos, por exemplo, pode ser mais eficiente do que tecelões trabalhando individualmente. Assim, uma empresa de maior porte pode ter custos de transação ainda melhores.

Essa premissa de eficiência em custos transacionais marcou toda a lógica empresarial do Século 20. Negócios especialistas como bancos, escritórios de advocacia ou mesmo escolas, evolução de grandes conglomerados, movimento de fusões e aquisições e a consagração de diversas técnicas de gestão seguiam, mesmo que implicitamente, a premissa de Coase.

Dessa forma, as empresas se tornaram máquinas de eficiência cada vez maiores durante o século passado. A rede de livrarias norte-americana Barnes & Noble é um exemplo conhecido. Depois de aquisições, a empresa abriu seu capital em 1994, com investidores eufóricos. Pelo seu poder de compra e modelo operacional, a livraria era praticamente imbatível em seus custos de transação. Mas 1994 também é marcado pelo início das operações de “você-sabe-quem”. Três anos depois, a Barnes & Noble processou a Amazon porque a startup se autoproclamava a maior livraria da Terra, quando, na verdade, em termos físicos, a maior, de fato, era a rede física. Porém, Bezos não estava se importando com este título. Se pensar bem, a polêmica foi melhor para quem? A venda média por funcionário na Amazon pulou para US$ 241, enquanto a da verdadeira maior livraria da Terra era de US$ 103 em 1997. Agora, não é preciso explicar que a lógica do custo de transação da Amazon tornou obsoleto o modelo de negócio da Barnes & Noble.

Essa diferença entre a dinâmica dos custos de transação digital e físico representa, para muitas organizações, a primeira premissa da necessidade da Transformação Digital. A própria Barnes & Noble tentou e não conseguiu. A rede de livrarias tem mais a ensinar para outras corporações tradicionais do que a própria Amazon que já nasceu digital.

Mas a Transformação Digital vai além, integrada ao que vem sendo chamado de Quarta Revolução Industrial, e está criando grandes ondas de mudança na sociedade e nos negócios. Neste contexto, a orientação do engenheiro Paul Baran em seu estudo sobre Redes de Comunicação Distribuída de 1964 tem se tornado a segunda premissa da Transformação Digital. Muitos o associam à internet, mas agora é fonte de inspiração para os CEOs e empreendedores mais visionários do mundo. Baran apresentou três conceitos de comunicação: Centralizado, Descentralizado e Distribuído. Para assimilar suas ideias é preciso avançarmos alguns anos depois do embate inicial entre Amazon e Barnes & Noble.

Tudo ia bem no reino da Finlândia. A reportagem de capa da Forbes de dezembro de 2007 explicava que a Nokia, a gigante finlandesa, poderia se tornar a marca de maior sucesso da história mundial nos próximos meses quando atingiria a marca de 1 bilhão de clientes. Naquele ano, a empresa venderia mais telefones celulares do que todos os seus principais concorrentes juntos. A receita evoluiria 30% e a empresa era líder não apenas em todos os segmentos de produto, mas também em todos os países, especialmente naqueles que apresentavam crescimento vertiginoso como China e Índia. Mas 2007 foi marcada pela vinda do “você-sabe-quem-também”. Sobre isso, o então CEO da empresa disse para a Agência Reuters: “Eu não acho, dado o que vimos até agora (da Apple), que seja algo que deveríamos mudar nossa forma de agir, nosso software ou abordagem de negócio”. E se o iPhone já não fosse um marco histórico, neste ano o Google anunciou o Android. Sobre isso, o líder da Nokia desdenhou o novo sistema operacional em entrevista para a Times: “Conceitualmente, poderíamos ter feito isto há muito tempo. Cinco anos depois, em 2012, a Nokia tinha praticamente desaparecido do mapa, com menos de 5% de participação de mercado.

O que Olli-Pekka Kallasvuo, CEO da Nokia na época, não percebeu é que tanto a empresa de Cupertino como a de Mountain View eram plataformas digitais, que, posteriormente, viraram ecossistemas de negócios. Nelas, outros empreendedores poderiam desenvolver suas inovações e integrá-las aos celulares com sistema iOS ou Android. Isso permitia incontáveis inéditos produtos, serviços e modelos de negócio. Provavelmente ninguém da Apple criaria um sistema para esmagar formigas na tela do iPhone. Coube a um brasileiro ter esta ideia maluca e ganhar muito dinheiro. Modelos de negócio como Uber, Instagram ou Waze dificilmente decolariam na lógica centralizada da empresa finlandesa. Sem o Android, por exemplo, o iFood quebra.

Na abordagem de Baran, Nokia e milhares de grandes conglomerados forjados na premissa de Coase sobre custos de transação são exemplos de centralização. Organizações com essa estrutura de comando e controle têm citado a Transformação Digital como principal prioridade, concentrando-se, basicamente, na digitalização do negócio.

A digitalização de processos é importante, deve ser feita, mas não será o suficiente pois a estratégia de negócios de todos os principais players digitais ou digitalizados já migraram para o que Baran denominou de descentralizado e distribuído. Essas novas perspectivas não foram vislumbradas pela Nokia quando Apple e Google entraram no seu mercado com um modelo descentralizado e dinâmico de crescimento com estratégias de plataforma.

A Amazon já tinha feito o mesmo em 1999, quando lançou sua plataforma Zshops. O problema, para os que ainda se questionam o que é Transformação Digital, é que os grandes líderes digitais que já se consolidaram como plataformas, agora migram suas estratégias para ecossistemas de negócio, um modelo distribuído, ao mesmo tempo integrado, de plataformas de plataformas, o conceito mais sofisticado de Baran.

Enquanto na digitalização é possível melhorar os resultados de curto prazo, na adoção de novos modelos digitais de negócio criam-se novas lógicas de negócio e na estratégia de plataformas amplia-se a capacidade de inovação; na liderança de ecossistema, domina-se a jornada do cliente. Tencent e Alibaba, de certa forma, já atingiram este patamar não só com o consumidor final, mas também no relacionamento empresarial. Google, Facebook e Amazon, em alguns segmentos, já chegaram lá. No Brasil, Mercado Livre e Magazine Luiza já avançaram na liderança de ecossistemas e outras grandes corporações já têm suas estratégias de plataforma e liderança de ecossistema de negócios em curso.

Nessa segunda premissa da Transformação digital, não importa o tamanho ou atuação do seu negócio, ou você lidera a plataforma ou é protagonista do ecossistema associado ao seu cliente final, ou fará parte de uma.

Mas a terceira e última premissa está associada à questão inicial: no seu negócio, o que não vai mudar nos próximos 10 anos? Aqui, o que Peter Drucker, principal pensador de gestão de todos os tempos, escreveu em seu livro A Prática da Administração nas Empresas em 1964 é cada vez mais relevante para Século 21. “A Teoria Econômica tornou fundamental a premissa de que maximizar lucro é o objetivo de qualquer firma. Isto não quer dizer que o lucro e lucratividade não sejam importantes. Isto não significa que a lucratividade não deva estar no objetivo da empresa e de suas atividades, mas não pode se limitar a isso. Lucro não é a explicação, causa ou racional de comportamento e decisões de negócios, mas um teste para sua validade. Se quer saber o que é um negócio, devemos começar pelo seu propósito. E seu propósito deve estar fora da empresa. Há somente uma definição válida para o propósito de um negócio: atender o cliente.”

Essa última premissa para a transformação digital deveria ser a primeira. É a única que não deveria mudar na opinião do fundador da Amazon: “Bem, certamente em 10 anos muitas coisas evoluirão, a tecnologia mudará. A tecnologia, em particular, evoluirá de maneira muito significativa no horizonte de dez anos. Mas eu sempre incentivo as pessoas, quando pensam em 10 anos, a fazer a pergunta: o que não vai mudar? Essa é realmente a pergunta mais importante. Você pode criar estratégias em torno de coisas que serão estáveis no tempo. Nessa visão de 10 anos, há muitas coisas na Amazon que não vão mudar. Uma delas, talvez a mais importante, é que permaneceremos obcecados pelo cliente.” – diz.

Neste contexto, as organizações mais visionárias enxergam na Transformação Digital o caminho para atender melhor os seus atuais e futuros clientes (Fonte: JOTA).